Elas perderam a luta no Senado: a maré verde não conseguiu mudar a lei argentina que só permite o aborto em caso de estupro ou risco de vida para a mãe. A lei é de 1921. Em pleno 2018, a ilusão de que o corpo da mulher é propriedade do Estado continua impedindo a América Latina de ir para frente. Estamos em 2018 e caminhamos cegamente em direção a distopia de Margaret Atwood, a escritora do romance The Handmaid’s Tale.
As argentinas sabiam disso quando se vestiram como as aias da série, baseada no livro, e saíram às ruas para protestar a favor da legalização do aborto. Na ficção, assim como na Argentina, no Brasil e em tantos outros lugares ao redor do mundo, as aias também não tem autoridade sobre o próprio corpo. Pelo fato de serem férteis, o governo totalitário sob o qual vivem determina que elas sejam estupradas por homens de famílias ricas para terem seus filhos e, assim, manter os níveis demográficos da população. Elas também não podem abortar. Elas também têm suas vidas decididas por homens, que nunca vão saber como é engravidar. Elas também são reféns em seu próprio país. E elas, assim como nós, resistem.
Reprodução: AdoroCinema |
O uso das roupas de aia como protesto não foi “para bonito”, nem para “lacrar”. O uso das roupas foi por causa da representatividade que ninguém quer ver. Foi porque as mulheres reais se identificam com as fictícias. Foi porque a realidade da mulher moderna pode, infelizmente, ser comparada a daquelas que vivem em uma distopia desumana e misógina, escrita em 1985. Mas não é só a opressão sofrida por elas que faz com que essas mulheres se relacionem. Existe inspiração na história das aias. Existe um brilho nos olhos de June, a personagem principal, que as argentinas enxergam ao olharem no espelho. Na série, a luta e a resistência, embaladas pela trilha sonora certa, prometem resultados e vitória (mesmo que ela possa demorar algumas temporadas para chegar). No entanto, apesar da mobilização de milhões a favor da legalização do aborto, o desfecho vitorioso no mundo real ainda não veio.
Nem foram somente as argentinas que espelharam a coragem e a obstinação mostradas na série. As polonesas também vestiram as roupas de aias para receber Donald Trump em 2017 e protestar contra os retrocessos nos direitos das mulheres, assim como as brasileiras, em agosto de 2018, usaram o uniforme das personagens durante uma discussão sobre a descriminalização do aborto, no Supremo Tribunal Federal.
Nem foram somente as argentinas que espelharam a coragem e a obstinação mostradas na série. As polonesas também vestiram as roupas de aias para receber Donald Trump em 2017 e protestar contra os retrocessos nos direitos das mulheres, assim como as brasileiras, em agosto de 2018, usaram o uniforme das personagens durante uma discussão sobre a descriminalização do aborto, no Supremo Tribunal Federal.
Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
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Mas The Handmaids Tale não é o único exemplo de cultura pop utilizado em atos políticos ao longo dos anos. Referências à sétima arte são vistas de tempos em tempos no mundo inteiro como modo de protesto para as mais diversas causas.
Como não falar de V de Vingança e sua influência cultural? O filme, baseado nos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd, mostra V como um revolucionário mascarado defensor da liberdade que planeja um atentado ao Palácio de Westminster, no Reino Unido, incitando a população a se rebelar contra o governo totalitário. O fato é que a máscara emblemática já não remete mais somente ao filme, mas à manifestações populares em geral e, principalmente, ao movimento Anonymous, associado ao uso da internet, por uma comunidade online descentralizada, para promover a liberdade de expressão a partir do ativismo digital. O grupo, criado em 2003, já envolveu-se em episódios como o fechamento de cerca de 10.000 sites relacionados a pornografia infantil e ataques à governos ditatoriais durante a Primavera Árabe, em 2011. O desejo por mudanças na sociedade moderna é associado à luta do personagem icônico que inspira cidadãos de todo o mundo quando afirma que o governo de veria temer seu povo, não o contrário.
Como não falar de V de Vingança e sua influência cultural? O filme, baseado nos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd, mostra V como um revolucionário mascarado defensor da liberdade que planeja um atentado ao Palácio de Westminster, no Reino Unido, incitando a população a se rebelar contra o governo totalitário. O fato é que a máscara emblemática já não remete mais somente ao filme, mas à manifestações populares em geral e, principalmente, ao movimento Anonymous, associado ao uso da internet, por uma comunidade online descentralizada, para promover a liberdade de expressão a partir do ativismo digital. O grupo, criado em 2003, já envolveu-se em episódios como o fechamento de cerca de 10.000 sites relacionados a pornografia infantil e ataques à governos ditatoriais durante a Primavera Árabe, em 2011. O desejo por mudanças na sociedade moderna é associado à luta do personagem icônico que inspira cidadãos de todo o mundo quando afirma que o governo de veria temer seu povo, não o contrário.
Foto: Jefferson Botega / Agencia RBS
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E é essa ideia de revolução e luta, sempre tão romantizada nos filmes e nas séries, que é buscada por aqueles que utilizam das referências cinematográficas para reivindicações reais. A cultura pop mobiliza, principalmente os jovens, em uma tentativa (por vezes, meio desesperada) de alcançar a glória de seus personagens favoritos e se tornar parte da história que está sendo escrita agora.
V de Vinganca e The Handmaids Tale não são casos isolados. Só no início deste ano, o filme Três Anúncios Para Um Crime inspirou protestos tanto nos EUA quanto na Europa. Os ativistas cobravam, em três outdoors, atitudes dos governos em relação a um incêndio ocorrido em Londres em 2017 e ao controle de armas na Flórida, depois do massacre em uma escola. Em 2014, tailandeses imitaram o gesto de Jogos Vorazes em manifestação contra o golpe militar no país e o filme foi censurado pelas autoridades.
O fenômeno, inclusive, transcende barreiras e foi observado também nos esportes, depois da estreia e do sucesso mundial de Pantera Negra. O longa, que exalta a cultura africana, inspirou atletas de diversas modalidades. Victor Oladipo, jogador de basquete, fez uma homenagem ao herói no concurso de enterradas da NBA, imitando o gesto feito pelos habitantes de Wakanda (reino em se passa o filme) com o ator que dá vida ao personagem, Chadwick Boseman. No futebol, os jogadores Jesse Lingard e Paul Pogba do Manchester United fizeram a saudação depois de marcarem um gol contra o Chelsea, compartilhando a foto no instagram com a legenda “Wakanda forever”.
V de Vinganca e The Handmaids Tale não são casos isolados. Só no início deste ano, o filme Três Anúncios Para Um Crime inspirou protestos tanto nos EUA quanto na Europa. Os ativistas cobravam, em três outdoors, atitudes dos governos em relação a um incêndio ocorrido em Londres em 2017 e ao controle de armas na Flórida, depois do massacre em uma escola. Em 2014, tailandeses imitaram o gesto de Jogos Vorazes em manifestação contra o golpe militar no país e o filme foi censurado pelas autoridades.
O fenômeno, inclusive, transcende barreiras e foi observado também nos esportes, depois da estreia e do sucesso mundial de Pantera Negra. O longa, que exalta a cultura africana, inspirou atletas de diversas modalidades. Victor Oladipo, jogador de basquete, fez uma homenagem ao herói no concurso de enterradas da NBA, imitando o gesto feito pelos habitantes de Wakanda (reino em se passa o filme) com o ator que dá vida ao personagem, Chadwick Boseman. No futebol, os jogadores Jesse Lingard e Paul Pogba do Manchester United fizeram a saudação depois de marcarem um gol contra o Chelsea, compartilhando a foto no instagram com a legenda “Wakanda forever”.
Reprodução: EXAME |
Como já disse o protagonista de V de Vingança, “o poder dos símbolos emana do povo” e é justamente quando utilizamos as referências do cinema para demandar reivindicações reais que damos valor a elas. A cultura pop une as pessoas na luta por mudanças em uma sociedade que precisa urgentemente ser reestruturada. No entanto, como as argentinas puderam ver, na vida real não são em apenas algumas temporadas que vamos mudar o curso da história. Só espero que, se mais 97 anos forem necessários para finalmente mudarem as tantas leis ultrapassadas que vigoram atualmente, que surjam personagens e histórias inspiradoras o suficiente para continuarmos a mesclar as lutas da realidade com as da ficção, na esperança de um dia atingirmos a gloria da sétima arte.