No dia 17 de setembro de 2022, Gal Costa fez seu último show no Festival Coala. Ali, mesmo sem saber do futuro decisivo, o setlist escolhido pela cantora refez a trajetória da sua carreira, passando por muitas de suas fases e deixando registrado suas vontades para o Brasil que virá. Analisar essas escolhas é compreender em seu âmago a relação espiritual que ela alegava ter com a música.

Desafinado – João Gilberto

Conhecida por ser a ‘’musa do tropicalismo’’, Maria da Graça Penna Burgos Costa inicia sua carreira já em alta. O primeiríssimo álbum de sua discografia ‘’Domingo, 1967’’ é, na verdade, uma aparição generosa na também estreia de Caetano Veloso. A dupla conta ter se conhecido em um bar em Salvador, famoso por reunir intelectuais – como humildemente se auto intitulavam. Na noite em questão, Gal se apresenta e canta para Caetano, que ao final questiona ‘’Quem é o maior cantor brasileiro para você?’’ e Gal responde ‘’João Gilberto’’. A cantora afirma ter sido nesse momento o grande encontro de almas entre os dois, como fica extremamente claro no álbum, que é embebido em versos e melodias bossanovistas, altas doses da exuberante escrita de Caetano, doçura da ainda tímida Gal, e muita, mas muita reverência ao ídolo compartilhado, que seguiu presente em suas trilhas, obras e palavras até o fim.

Divino Maravilhoso – Gilberto Gil

Indiscutivelmente uma das gravações mais célebres de sua carreira. Mais um exemplo daquelas músicas que uma vez gravadas por Gal, são Gal. Memoráveis na sua voz, e apenas nela. Questionada sobre a primeira e marcante apresentação dessa canção, a cantora conta que ali descobriu uma nova forma de se expressar. Quando Gil, autor da música, perguntou qual era sua vontade quanto à performance, Janis Joplin e sua maneira gritante de cantar surgiu a sua cabeça. Era isso que desejava, cantar de forma mais penetrante, mesmo que, sem saber, já fizesse isso à sua doce maneira. Agora seria uma nova Gal, sem Maria da Graça.

A história de Lily Braun – Chico Buarque

A letra é a sedutora descrição de um encontro, o ‘’homem dos sonhos’’ que incisivamente galanteia a tal Lily Braun, com direito a flores, poemas, luzes e flashes, tudo para conquistá-la. Até que, quando consegue, o romance acaba. Agora, como esposa, não é mais bela, amada ou livre. Também presente em grande parte de sua carreira, essa música representa a vida de tantas mulheres brasileiras. São incontáveis as histórias de musas que tiveram o mesmo destino, mas não a da nossa musa tropicalista. Gal foi – e sempre será – um sex symbol fatal. Apesar de sua beleza, seu famoso sorriso e personalidade meiga que configuram, sim, um certo padrão feminino esperado, principalmente nos anos 1970, ela surpreendeu ao conquistar e manter essa fama impecável mesmo após não se portar como tal. No início de sua carreira, seu estilo representava a jovem e bela em ascensão, mas, quando adentrou de fato no tropicalismo, Gal testou e rompeu todos os limites, inclusive no visual. Incomodou não apenas os mais conservadores, mas aqueles sensíveis a mudanças também estranharam ao vê-la usando calças jeans – o que era incomum -, assumindo um black power e, o ato fatal, as pernas escancaradas enquanto tocava violão sentada, em muitas de suas apresentações na televisão. Atos que para a época significavam grande rebeldia, mesmo que não fosse sua intenção. Continuou a explorar sua sensualidade por todo o percurso, sua marcante fotografia de capa do álbum Índia é até hoje ousada aos olhos: close que marca o final de sua barriga ao início das coxas, sua virilha em calcinha vermelha. Para a comercialização, o disco teve que ser tapado com sacolas plásticas para poder circular. Gal nunca foi Braun.

Em sua mais natural natureza, Gal Costa era doce e bárbara. Carregava em seu canto uma perigosa pureza capaz de enfeitiçar os próprios feiticeiros, na maioria das vezes sem a intenção, tornando-a ainda mais maléfica. Causará arrepios quentes e frio na barriga sempre que lembrada, como um grande amor inesquecível.

Escrito por

Eduarda Piltcher

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