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O presidente da República deve ter imaginado que sua fala seria engraçada. Uma piada para descontrair. Afinal, quem nunca ouviu o tio da família “brincando” que usar rosa é coisa de menina ou de gay?
Ora, senhor presidente, já passamos do tempo em que deveríamos ter que explicar o quão infeliz e preconceituosa foi tua fala. Ainda assim, vou fazê-lo para que não reste dúvidas. Por mais óbvio que seja, é importante relembrar que cores e alimentos não alteram a orientação sexual de ninguém. A associação da cor rosa ao gênero feminino é uma construção social. O fato de ligar homossexuais a esta cor reforça a ideia de que estes não pertencem ao gênero masculino, já que apresentam características socialmente entendidas como de mulheres – que horror seria se nos parecêssemos com estes seres frágeis, não é mesmo?
A heterossexualidade, suas características e formas de expressões estão enraizadas nos modelos sociais de maneira que invisibilizam e discriminam identidades que se permitem ir além desses determinantes. Não é de hoje que a população LGBTQIA+ desafia os padrões heteronormativos e é discriminada por isso pelos governantes do nosso país e por aqueles que seguem suas ideologias. Cá entre nós, já passamos do tempo de parar de limitar pessoas a cores e caixinhas comportamentais. Para quê aprisionar quando a liberdade é tão rica de possibilidades e aventuras?
Também acho necessário lembrar, senhor presidente, que parecer ou ser homossexual não é e não pode ser visto como algo negativo, que desmereça alguém ou que deva ser temido. Qualquer comportamento que reforce a ideia de que a homossexualidade é ruim e precisa ser combatida é homofóbica e, portanto, inaceitável – especialmente, quando vindo da pessoa que ocupa o cargo de maior poder dentro do país.
“Ah, mas é só uma brincadeira”, o tio da família vai dizer. Essa aparente “brincadeira” esconde o preconceito pela população LGBTQIA+. Camufla o real significado das palavras. Mas sabe o que não dá para esconder? Os números.
Em 2019, 329 LGBT+ morreram no Brasil, das quais 297 foram assassinadas e 37 cometeram suicídio, segundo o relatório do Grupo Gay da Bahia. Dados que conferem ao país a liderança no número de mortes de pessoas LGBT+. Aliás, só nos primeiros cem dias de 2020, 91 pessoas LGBT+ foram assassinadas e outras 11 cometeram suicídio.
“Ora, mas o que uma coisa tem a ver com a outra?”, pode perguntar o tio da família.
A reprodução de piadas reforça a LGBTfobia, tornam a população LGBTQIA+ alvo de chacota e humilhação. Ela é o pontapé inicial de um ciclo de violências que essas pessoas passam. O fim pode ser a morte. Essas brincadeiras começam dentro de casa, vão para a escola, o ambiente de trabalho, o restaurante, a festa, a rua.
Vamos lá, tio. Imagine alguém brincando contigo sobre a vergonha que é ser heterossexual. Pense em alguém falando frequentemente do medo do filho ser heterossexual. Vamos, tio. Visualize a cena: um colega de trabalho imita teus trejeitos e expressões heterossexuais.
Imaginou? Agora me diga como se sente. Não conseguiu imaginar? Nossa, que privilégio. A população LGBTQIA+ não só imagina como sente quase que diariamente essas e outras situações ainda piores, muitas das quais começaram com uma brincadeirinha como a sua, tio.
A manutenção dos estereótipos negativos e da invisibilidade LGBTQIA+ na sociedade são alguns dos estressores sociais que esta população enfrenta ao longo da vida. As consequências incluem ansiedade, dificuldade nos relacionamentos, depressão, síndrome do pânico, ideação ou tentativa de suicídio.
É, não tem graça, senhor presidente.
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O texto foi escrito pelo psicólogo Heslei Kemmrich Martins, colaborador do Acabou em Pizza.
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