Estamos, mais uma vez, diante de um período político polarizado, marcado por debates acalorados (ou pela falta deles) e declarações polêmicas. Um dos bafafás do último mês foi o discurso da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, sobre que cores meninos e meninas deveriam, ou não, usar – a ironia das prioridades da ministra no país que mais mata transexuais seria engraçada, se não fosse triste. O vídeo com a fala da advogada viralizou e gerou grandes discussões nas redes sociais, além de manifestações por parte de diversas figuras públicas.
Um exemplo dessa repercussão é o videoclipe Proibido o Carnaval, da cantora Daniela Mercury, com parceria de Caetano Veloso. Com mais de 635 mil dislikes até agora, a música exalta a liberdade individual e rejeita as ideias da ministra com os versos “Minha alma não tem tampinha / Minha alma não tem roupinha /Minha alma não tem caixinha”, enquanto exibe ela de azul e ele, de rosa. Mesmo com o tom descontraído, a letra se complexifica e cita movimentos de contracultura como a Rebelião de Stonewall (manifestação LGBT de 1969 contra a violência policial novaiorquina) e a Tropicália, marco importante da música brasileira durante a ditadura. O engajamento político da música não para com a melodia: no final do vídeo, Mercury dedica o clipe ao seu “amigo amado e incansável”, o deputado Jean Wyllys, que deixou o país após receber ameaças de morte.
Caetano, que em janeiro gravou uma nova versão do clássico Divino Maravilhoso (1968) com a cantora pop IZA, é uma figura de peso no cenário artístico e político brasileiro desde a década de 60, por sua participação no movimento tropicalista. A Tropicália foi marcada pela música de protesto em um período de instabilidade política, tornando a arte uma forma de crítica velada em meio à censura do governo militar. Manifestando abertamente seu apoio ao ex-presidente Lula, o cantor usa sua visibilidade como modo de incentivar o debate político, alcançando tanto o público que o acompanha desde o começo da carreira, quanto o público mais jovem, a partir de suas parceria com cantores atuais como Emicida e Maria Gadú.
Outro ícone da música de protesto que permanece influente e ativo politicamente é Chico Buarque. O compositor recentemente participou do Festival Lula Livre acompanhado de Gilberto Gil, com quem cantou Cálice, música censurada no festival Phono 73, durante a qual o microfone de Chico foi desligado pelos organizadores. Defensor dos movimentos sociais, ele participou das gravações da colaboração O Trono do Estudar, em 2015, em apoio aos estudantes que ocuparam escolas estaduais em São Paulo e, em 2018, junto de Fernanda Montenegro, do clipe Manifestação em comemoração aos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos 57 anos da Anistia Internacional.
A música de protesto pode ter tido seu momento de glória nos anos de ditadura, no qual a censura dificultava qualquer tipo de expressão contrária ao governo, no entanto, a arte como forma de manifestação política e social continuou a se desenvolver ao longo dos anos e se expandiu para várias vertentes. O rock nacional colaborou para a evolução do gênero, com nomes como Raul Seixas e Renato Russo, e o rap, que hoje é, provavelmente, o seu maior representante. O rapper Marcelo D2, por exemplo, conhecido por Carta ao Presidente e Desabafo, atualmente também faz sucesso no Twitter por suas manifestações sobre a situação política do país. Já Mano Brown, do Racionais MC’s, se engajou inclusive na campanha de Haddad em 2018, se pronunciando no palanque da Lapa.
A música sempre conseguiu abranger a indignação do povo, especialmente em tempos de instabilidade como os de hoje. Inspirados pelos movimentos passados e suas conquistas, muitos artistas recorrem à ela para promover reflexões sobre a situação do país e, ao mesmo tempo, fazer um paralelo entre o período atual e a década de 60. Em 2016, diante da possibilidade do impeachment da presidente Dilma, Roda-Vida, de Chico Buarque, serviu de fundo para vídeos-manifesto de figuras públicas que se posicionaram e fomentaram o debate sobre o cenário político, defendendo a democracia.
Guiados pelas vozes da história, os artistas seguem apaixonados pelo poder revolucionário da música, acreditando, assim como Chico, que vai passar. Apesar dos apesares, amanhã há de ser outro dia e a arte há de resistir e fazer a diferença… Sempre faz.
– O conteúdo da coluna é de responsabilidade da autora.