Fotos Letícia Müller
Texto Mateus Rolim
O conceito de entidade está ligado a uma consciência mística que vaga de forma incorpórea. Algo que existe na atmosfera da vida como um espírito: maleável, orgânico, intangível. Alguém como Jorge Ben Jor, que subiu ao palco do Araújo Vianna neste último sábado (20), em Porto Alegre.
Para fins de concordância, é mais adequado dizer que subiram ao palco, em um só corpo de questionáveis 83 anos, o jazzista que definiu o novo esquema do samba, o celebratório e premonitório ativista de Negro é Lindo, até mesmo ecos do alquimista esotérico de A Tábua de Esmeralda. Estavam ali também o assentado ícone da música popular brasileira que frequentemente colabora com jovens músicos em ascensão, o amigo pessoal do barão da propaganda Washington Olivetto, o senhor que
desenquadrou-se da linha evolutiva que tão estoicamente busca mapear e catalogar como as harmonias, melodias e letras deste país.
De branco dos pés à cabeça, iluminado por cromáticas de verde e vermelho, sol e ré, Jorge
Ben Jor parecia estar emulando a figura de um orixá que se fraciona em diversas
qualidades a depender dos olhos de seus filhos. O público colaborou, apesar da já
conhecida secura dos quadris porto-alegrenses. Foi paisagem normal as golfadas de
cerveja sendo espirradas pelos assentos do auditório. Inclusive, uma espécie de área livre
ao lado das cadeiras tomou corpo de maneira espontânea para que os mais efusivos
pudessem bailar sem serem incomodados pelas limitações que seus próprios ingressos
compraram.
Mas nem tudo são gols de placa e belas musas. Há um elemento de louvor aos deleites
brasileiros na música de Jorge Ben que hoje encontra-se submerso no pântano que virou a
vida social do nosso pedaço de chão. Cantar um Brasil tropical, suíngado, de chinelos à
beira do calçadão — aquele Brasil abençoado por Deus e bonito por natureza — causa
estranhamento, no mínimo. Talvez o distanciamento histórico possa nos permitir observar a
obra de Jorge Ben, especialmente o caldo grosso de seu repertório, como o último
repositório de um ufanismo bem-aventurado que topou com a tragédia política e econômica
como uma força imparável que se choca contra um objeto inamovível. Ou talvez lembremos
de canções como País Tropical, Que Maravilha e Take It Easy My Brother Charlie, todas
entoadas em uníssono durante o show, sendo elas uma sorte de presságios, arroubos de
esperança que sobreviveram às trevas que nos enfiamos ao longo da história.
Mesmo que sua idade seja uma incógnita até para si próprio, mesmo que os pés de galinha
estejam encobertos pelas lentes escuras dos óculos, Jorge Duílio Lima Meneses está fresco
como um peixe de feira. Do alto de seus 83 anos – ou seriam 77? -, Jorge Ben ainda
demonstra um vigor físico que, para falar a verdade, não possui qualquer necessidade de
ser gasto conosco. Ainda dança, sapateia, arrisca oitavas acima do alcance de sua goela já
envelhecida, parece ter genuíno prazer em contracenar com os membros de sua banda em
sessões de improviso. Me parece que todo esse esforço é um estorvo para alguém que
conquistou o direito de vadiar em seus aposentos no Copacabana Palace, à luz do sol
carioca e à sombra da entropia social da atualidade. Ele o faz, suponho, por não estar
satisfeito com a curva lúgubre que tomou o país que ele compôs