EPISÓDIO 10
Uma rua é feita de quem a compõe. De quem ali mora, passa, fica, vai. Sempre entendi a rua desse jeito: uma mistura, uma composição, um quadro de suas pessoas, de seus objetos e de tudo que ali é e está. To be. Mais recentemente, porém, comecei a repensar sobre o jeito como eu via e lia a rua em que eu morava.
Explico. Moro no alto de um prédio da Avenida Salgado Filho. Aos meus pés, todos os ônibus que partem ou que vão à Zona Sul da Capital passam gritando. São sons de motores que já não têm mais a mesma força para trabalhar, mas que continuam a exercer seu serviço, exauridos, cansados. Entendo. Que lástima é locomover pessoas e, mesmo assim, nunca sair do lugar. Preso, eternamente, à função de ser motor.
Foto: Daniel Giussani |
Pois isso que mudou na minha concepção sobre as ruas. Para mim, é verdade, a Salgado Filho é a pessoa atrasada para um compromisso, é o feirante ansioso por vender suas hortas, é a loja com 25% de desconto na Black Friday, é o movimento. Mas é, principalmente, o barulho do motor do ônibus.
Uma rua é feita de quem a compõe. E, também, do que ela fala, do que ela grita. Do seu barulho.
Imaginem meu susto, ou melhor, o susto de meus ouvidos, quando, no fim de março, a música de minha rua parou. De uma semana para outra, os principais cantores da parada foram se minguando, até sobrar um ou dois. Seu público, ávido, fanático – sim, fanático: não raro os via correndo atrás do ídolo -, desaparecido. Abria a janela de minha sala e o som do vento era maior do que qualquer som que antes eu ouvia vir da Salgado.
Mas, para mim, o som do vento de pouco importava. Oras! Se eu quisesse som de vento, ia morar perto do rio, Ipanema, no interior, ou talvez numa dessas ruas arborizadas da zona nobre da cidade. Essas ruas, sim, são ruas de vento. Mas, a minha Salgado, não. Ah, não. O que eu queria era o som dos motores de volta.
Tratei o caso como situação de calamidade pública. Dei ordens expressas para todos que eu conhecia que ficassem em casa! Que usassem quilos de álcool gel e máscaras. Meu objetivo era um só: se livrar dessa peste. Não contente em matar pessoas, expor maus governos, prejudicar a economia e ainda viajar pelo mundo todo em meses, invejando qualquer personagem de Julio Verne, essa pequena criatura tirou a única coisa que eu tinha: o maldito grito do motor do ônibus da Salgado Filho.
No início, meu plano parecia estar dando certo. Era uma troca necessária. Um sacrifício a ser feito. Meu ouvido estranharia o silêncio por um ou dois meses, mas, em seguida, as coisas voltariam ao normal. A orquestra de ônibus retornaria em uma sinfonia, um coro. Que nada. Ingênuo. Cá estamos, oito meses depois. Se locomovendo no tempo, deslocando-se, mas, ainda parados, praticamente no mesmo lugar. Como o motor de um ônibus.
Não posso mentir. É verdade que a situação não é a mesma de que em abril. Vejo pelas janelas. A movimentação existe. As pessoas estão ali, de volta. Os ônibus estão ali, de volta. Há dias que passo o olho pelo vidro de relance e parece que tudo está como sempre esteve: a pessoa atrasada, o feirante ansioso, a loja com desconto, o movimento. Menos o barulho. Há um som. Ele sobe os seis andares do prédio, atravessa minha janela, entra no meu ouvido. Mas, não é o barulho da Salgado. Não daquela Salgado, da minha Salgado.
Fico imaginando se um dia terei este som de volta, ou se é algo que ficou perdido em algum momento no fim de março. Nos dias de maior abstinência, me revolto, indagando o porquê de não conseguirmos ter controlado essa pandemia tal como outros países pelo mundo. Por que estamos há oito meses enfrentando isso e a curva não desce? Por que não ouvimos os cientistas? Por que não usamos máscaras? Por que acreditamos em falsos milagres? Por quê?
Talvez eu saiba o porquê, mas tenho medo de falar em voz alta. O som das palavras é poderoso e perigoso. Prefiro o som da Salgado aos dos meus pensamentos. Que volte logo.
Crônicas de Sexta
Este texto faz parte do projeto ‘Crônicas de Sexta’. Leia mais:
Episódio 3: “O Buraco das Emoções”
Episódio 4: “Um Bom Motivo Para Chegar Atrasado”
Episódio 5: “Calmaria em Meio ao Caos”
Episódio 8: “Até amanhã”
Episódio 9: “Que altura tem o teto?“
A arte do projeto é da Vitória Cristofolli. Acompanhe o trabalho dela aqui: @nuncanemvit_