EPISÓDIO 9

Depois de tanto tempo de isolamento social, o olhar cansa. Os pequenos cômodos do pequeno apartamento deixam de oferecer qualquer novidade. Principalmente, porque os mais de duzentos dias dessa “pra lá de duzentena” seguiram quase todos o mesmo ritmo rotineiro.

É engraçado lembrar que, assim que nos voltamos para dentro, nossas casas eram recheadas de peculiaridades. Instrumentos de trabalho, itens que proporcionassem mais conforto, passatempos esquecidos e incontáveis lembranças do mundo exterior foram analisados com cuidado em meio às arrumações típicas do início da pandemia. Por aqui, também fui envolvida pela aura de Marie Kondo. Logo no primeiro mês, tudo já havia sido movimentado em alguns milímetros. Compreendi essa súbita aproximação com os objetos como uma fase de reconhecimento mútuo entre a casa e eu. Enquanto isso, na avenida aqui em frente, todos os dias pareciam domingos quentes, e as poucas pessoas que se arriscavam a andar por ela se esquivavam rapidamente pelas sombras. Por isso, ficar assistindo à vida pela ampla janela não conquistava o meu interesse. Hoje, tudo está ao avesso e o reconhecimento excessivo da casa passou a gerar um incômodo silencioso.

Foto: Maiara Dallagnol

Nesses dias em que se tem muito o que fazer, mas a mente insiste em procrastinar mais um pouquinho, lembrei de um vídeo que assisti há uns 5 anos. Era uma reflexão instigante sobre os cantinhos desconhecidos da nossa casa e sobre construir novas perspectivas a partir deles. Movida pelo impulso da descoberta, decidi tentar fugir da monotonia e deitei no chão da cozinha. Minha principal sensação foi o desconforto da mente, que se embaralha tentando reassumir o controle da situação. O teto se torna bem mais alto do que estamos acostumados e se impõe distante. Desse ângulo, a geladeira toma uma forma esquisita e é uma ação corajosa virar a cabeça e encarar os seres assustadores que podem estar embaixo do móvel da pia – felizmente, o nível de poeira estava aceitável e encontrei apenas alguns talheres. Desde então, nos dias em que sinto que preciso bagunçar meu olhar, escolho um novo lugar para observar atentamente. Já sentei sob os quadros (esses sim estavam imundos!); deitei com a cabeça para fora da cama até o sangue fluir para o rosto e eu me lembrar daquele conselho de mãe que alerta para não ficar nessa posição por muito tempo. Também encontrei o meu lugar favorito sobre o encosto do sofá. Me erguer rapidinho ali junto à parede fria foi um incentivo para reviver a infância e, por isso, esse exercício de desconstrução dos pontos de vista tem sido bastante significativo pra mim. Tenho muito a descobrir sobre os espaços que habito e sobre como eles me habitam também.

Inclusive, nesta madrugada me deparei com um local ainda mais excêntrico. Fiquei estática por vários minutos, olhando com curiosidade para dentro do ralo do tanque, imaginando o que há depois da sutil curva que o encanamento faz. Isso porque na sutil curva caiu um isqueiro. Tentei puxá-lo de várias maneiras, mas nenhum dos meus objetos longilíneos possui as características necessárias para não colocar tudo a perder. Pensando nisso, até deixaria lá, mas tenho medo que sua presença cause grandes problemas. Quando a vizinhança já estiver acordada, vou tentar puxá-lo com o aspirador de pó, torcendo muito para que dê certo. Torçam também para que o resgate seja bem sucedido ou, talvez, o gás do isqueiro será responsável por fazer tudo ir pelos ares. Já imaginou? Aí, sim, todas as perspectivas dessa casa seriam totalmente transformadas.

Esta crônica foi escrita por Maiara Dallagnol.  


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Sobre a autora:


Maiara Dallagnol é jornalista em formação e atua como gestora de comunicação em projetos socioculturais na cidade de Porto Alegre. Palpiteira de carteirinha e procrastinadora em assuntos pessoais, seus pensamentos fluem melhor durante a madrugada.

Crônicas de Sexta

Este texto faz parte do projeto ‘Crônicas de Sexta’. Leia mais:
Episódio 8: “Até amanhã” 

A arte do projeto é da Vitória Cristofolli. Acompanhe o trabalho dela aqui: @nuncanemvit_

Escrito por

Acabou em Pizza

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