EPISÓDIO 3


Acordei e a primeira coisa que fiz foi abrir a janela. Senti a vibe do dia e isso já moldou como seriam as minhas próximas 24 horas. Os raios de sol, a geada que cobre o terreno baldio, os pingos de chuva apostando corrida no vidro. São esses os primeiros encontros com a realidade depois de sonhos mágicos ou até mesmo aterrorizantes.

Esse pequeno (ou enorme) buraco entre as paredes do quarto forma não só a vista que tenho do lado de fora, mas também é responsável por sensações distintas com o passar do tempo. Lembro de, com 12 anos, época em que cheguei nessa casa, brincar de ver as pessoas da quadra de baixo com meu telescópio de R$ 99,90 comprado da China. Já aos 15, pensar em como conquistaria a garota mais linda do colégio (mesmo que só eu achasse isso). Aos 18, em como queria me deparar com outro cômodo todo o dia ao abrir os olhos, na esperança de estudar na Capital. 

Foto: Leonardo Caberlon

Hoje, olho para ela e só consigo imaginar quanto tempo vai demorar para eu voltar a sentir saudades dessa paisagem que possibilita ver boa parte da cidade. Isso porque a situação pode ser a pior de todas,  sempre há um pingo de saudade em cada acontecimento, mesmo que minúsculo. Pelo menos eu acredito nisso. 

Agora eu entendo: não é à toa que a janela serve de instrumento para tantas letras de músicas. Seja para ver o amor passar com Gilberto Gil,  para entender que o caminho é um só com Legião Urbana, ou para ver Porto Alegre do avião com os Engenheiros do Hawaii. Esse último, inclusive, é o responsável pela trilha sonora da minha vida. A brecha entre os tijolos se transforma em uma verdadeira acompanhante de emoções. Afinal, é pendurado nela que lembro também de me sentir como o Homem Aranha depois de assistir ao filme pela décima vez. 

Ah e não posso esquecer dele: Roberto Carlos. Como é bom finalmente poder compartilhar das suas falas e dizer que são tantas emoções. Sem a possibilidade de ir ao estádio, assisto aos jogos do meu time sempre com o vidro aberto. Assim, a cada raro gol a favor, a janela do quarto se transforma em alambrado. É como se sentisse, mesmo que por cinco segundos ou menos, a energia de abraçar um torcedor desconhecido e tirar o peso entalado na garganta. Sinto é pena dos vizinhos quando os jogos são a noite. Mas o azar é deles, não meu. Ainda mais que essa se tornou uma das únicas maneiras de externar os sentimentos ao ficar trancado em casa por meses. É por meio dela que também consigo ouvir o prédio falar – os gritos da família que vem de cima e o gaiteiro mirim de baixo, que cisma em treinar suas músicas às oito horas da manhã todo santo sábado. Então, eu diria que estamos quites no quesito barulho.

Longe da minha residência de Porto Alegre para evitar a solidão extrema de cumprir uma quarentena sozinho, vem a nostalgia. A lembrança de olhar a perimetral à noite, as poucas pessoas caminhando rumo aos bares, as árvores balançando como se estivessem curtindo um disco do Lulu Santos. E eu ali, na minha mansão de 40 metros quadrados, dentro do meu mundo, em um dos poucos momentos de calmaria dos dias, me preparando para a famosa correria de amanhã.

Enfim, emoções essas que têm características próprias, ligadas ao lugar e à vivência do momento. Emoções boas, ruins, não importa. Apenas emoções, né, Roberto?

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Esta crônica foi escrita por Leonardo Caberlon.

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Sobre o autor:

Leonardo Caberlon é entusiasta de assuntos aleatórios e estudante de jornalismo nas horas vagas.

Crônicas de Sexta

Este texto faz parte do projeto ‘Crônicas de Sexta’. Leia mais:

A arte do projeto é da Vitória Cristofolli. Acompanhe o trabalho dela aqui: @nuncanemvit_
Escrito por

Acabou em Pizza

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