Questlove é um cara que vive da música. Baterista da lendária banda de hip-hop e soul The Roots, Ahmir Thompson já trabalhou ao lado de Jay-Z, Erykah Badu, Amy Winehouse, John Legend e mais uma penca de artistas de renome. Depois de se consagrar como músico e produtor musical, chegou a vez de se aventurar pelo audiovisual.
A proposta não foi nem um pouco simples: resgatar e destacar o Festival Cultural do Harlem de 1969, conhecido à época como o Woodstock dos negros. Como toda manifestação da época, a música era mais um ato de resistência e de reafirmação cultural.
Em poucos minutos já fica claro a ideia de Questlove para Summer of Soul. O diretor realiza um recorte dos melhores momentos dos seis fins de semana de festival e contextualiza para um novo público que aquilo não era apenas um encontro para desfrutar de sucessos da rádio.
“Eu nunca havia visto tantos de nós”, afirma um dos entrevistados em determinado momento do longa. As imagens da época são irrefutáveis em demonstrar milhares de negros, boa parte moradores do Harlem, escutando, dançando e rindo ao som dos melhores artistas que a década de 60 ofereceu. Stevie Wonder, Nina Simone, David Ruffin, B.B. King, Sly and the Family Stone – que também esteve presente em Woodstock – foram apenas algumas das atrações do festival.
A familiaridade que o diretor consegue impregnar acontece de maneira sutil: na lembrança da vaselina que era levada aos joelhos para não ressecarem; do frango envolto em papel alumínio; das bancas ao redor do Mount Morris Park (hoje Marcus Garvey Park). E, claro, na lembrança do gospel.
O gênero de igreja é um símbolo da música negra e teve um destaque grande durante o festival daquele ano. O Harlem Cultural Festival de 1969 aconteceu cerca de um ano após o assassinato de Martin Luther King Jr. e durante o primeiro mandato do presidente Richard Nixon. Isso fez com que, mesmo com policiamento no local, a segurança do festival ficasse a cargo dos Panteras Negras.
Homenageando um de seus líderes e exaltando a sua religião, o gospel foi comandado por Mavis Staples e Mahalia Jackson, além da figura onipotente de Nina Simone. Em determinado momento, um dos entrevistados destaca que a música, em específico o gospel, é o resultado da conversão do espiritismo africano ao cristianismo americano, que por sua vez passa a ser imbuído da raiva e da libertação do escravo. É a erupção; a catarse de um povo em um momento de união.
“Nós queríamos progresso. Somos negros e deveríamos nos sentir orgulhosos disso. Queremos o nosso povo nos admirando e torcendo por nós. Acreditávamos nesse sentimento, então subimos no palco”. A fala é de Gladys Knight, uma das maiores ícones do soul. Sua frase reflete as ações de Nina Simone e de diversos outros artistas em frente a multidão de 50 mil irmãos naqueles fins de semana.
Ainda assim, o festival foi esquecido. 1969 é o ano do homem na lua; é o ano de Woodstock. Mesmo com uma ótima filmagem e com presenças de peso, o Festival Cultural do Harlem não vendeu, não foi noticiado e não despertava interesse naqueles que ficaram de fora. A “Woodstock negra” não era desejada. Não é à toa que o mundo conhece a magnitude do que aconteceu apenas hoje, 50 anos após sua realização.
A escolha de Questlove de quebrar os padrões documentais ao final do longa e conversar com um dos entrevistados é talvez o maior acerto do diretor e reflete exatamente sua pretensão. É um retrato da aproximação de dois iguais, confirmando que aquilo de fato aconteceu e com um transbordar de emoção contagiante. No fim das contas, Summer of Soul é a tentativa bem sucedida de resgatar uma alma em formato de festival – e que por muito tempo esteve reprimida no esquecimento. Resta a nós agradecer que existem curiosos como Questlove.