Após o sucesso de Pantera Negra (2018), Hollywood entendeu que havia espaço para histórias negras de ação no cinema. Os arrebatadores 1,3 bilhão de dólares de bilheteria mostraram que o mundo estava preparado para assistir e celebrar um momento da história há muito ignorado.

A história original de A Mulher Rei foi escrita em 2015 pela atriz Maria Bello e Dana Stevens e o duo rapidamente vendeu a ideia para Viola Davis. Porém, os estúdios resistiram em desembolsar o orçamento necessário para a obra. Em 2018, três anos depois, o filme foi anunciado, com Davis e Lupita Nyong’o nos papéis principais. A ideia de um épico de ação situado em um reino africano e com protagonistas femininas encantou o elenco e Nyong’o viajou até Benin – atual local do Reino de Daomé. A atriz filmou um curta documental intitulado Warrior Women apresentando as Agojie, guerreiras da Guarda Real de Daomé.

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O encanto, porém, foi diminuindo à medida que a atriz conversava com descendentes do Reino de Daomé. Em determinado momento do documentário, Nyong’o se depara com o trono de caveiras do Rei Ghezo, além de ouvir o relato da neta de uma mulher escravizada pelas Agojie. O documentário encerra afirmando que “o papel da fantasia é criar heróis que não podemos ter no mundo real”. Pouco depois da sua viagem, Lupita Nyong’o deixou a produção de A Mulher Rei, sem explicação.

No filme de Gina Prince-Bythewood (The Old Guard), somos apresentados às Agojie, um grupo de guerreiras responsáveis pela segurança do Reino de Daomé. Logo na primeira cena, acompanhamos um ataque coordenado por Nanisca (Davis) e cheio de brutalidade.

Esse, inclusive, é um ponto que A Mulher Rei sabe usar ao seu favor. Restrito para audiência acima dos 13 anos, o filme consegue chegar no limite permitido de sangue, violência e brutalidade. As cenas de luta empolgam, em especial nos arredores do Porto de Uidá.

É importante destacar o Porto de Uidá na trama. Antes controlado pelo Reino de Daomé, o local passa a ser propriedade do reino vizinho, Oyo. Foi em Uidá que grande parte do tráfico negreiro aconteceu. Mais do que isso, Daomé foi o reinado africano que mais vendeu escravos para o Brasil. Mais do que Oyo e qualquer outro.

A escravidão é, sim, tratada na trama de A Mulher Rei, inclusive, sendo parte central do seu enredo. A historiadora Marina de Mello e Souza, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) destaca como funcionava: “Era um círculo vicioso: as vendas de escravizados lhes davam armas e as armas possibilitavam obter mais escravizados. O comércio de escravizados acirrou rivalidades, estimulou guerras e desarticulou profundamente as sociedades africanas tradicionais”. Essa exata explicação é replicada em determinado momento do filme.

Bom, se o filme apresenta esses temas, então há precisão histórica?

Não. Há dois pontos cruciais de desvio de precisão e ambos partem das próprias Agojie. Perturbada com pesadelos de uma besta na floresta, Nanisca entende que o uso da guerra para coletar escravos apenas enfraquece os reinos africanos, pleiteando ao Rei Ghezo (John Boyega) que a prática seja substituída pela agricultura.

Não há nenhum histórico de que as guerreiras propuseram o fim da escravidão e do tráfico negreiro, que demorou anos ainda para ser implementado em Daomé. Mais do que isso, o Rei Ghezo foi contrário ao fim da prática, responsável por dar estabilidade financeira ao seu reinado e por enfraquecer os reinos vizinhos.

Além disso, o filme deixa de lado qualquer espaço cinzento e assume uma posição completamente polarizada a partir de certo ponto. O Reino de Daomé é herói, enquanto Oyo é vilão, com uma representação caricata de Oba Ade (Jimmy Odukoya) e seus inferiores.

Ok, mas praticamente todos os anos vemos filmes históricos sobre a Inglaterra, Estados Unidos e demais países de maneira glorificada e eles também tinham hábitos terríveis, desde tortura de minorias até a escravidão; por que apenas ressaltar esses pontos em A Mulher Rei? Em primeiro lugar, já era hora de um reino como o de Daomé receber atenção, e a tendência é que mais obras como essa sejam realizadas. Afinal, a ação é bem feita, há entretenimento para ser aproveitado e a criação de mundo é ótima, apesar do ritmo cambaleante. Mas nada disso exclui a distorção da realidade.

A Mulher Rei escolhe fazer da resistência à escravidão seu compasso moral e, então, representa de maneira rasa e errônea um reino que traficou dezenas de milhares de negros como uma vanguarda abolicionista. A falta de exatidão histórica apenas enfraquece a mensagem que o filme busca propagar e concebe munição a seus opositores, que buscam qualquer brecha para diminuir um filme que exalta um grupo de mulheres negras e guerreiras.

Assista ao trailer:

A Mulher Rei

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2.0/5
Escrito por

Alberto Fanck

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