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Eu não sei explicar exatamente o porquê, mas o mundo dos crimes sempre me atraiu. Leio livros com essa temática, vejo filmes, consumo notícias. Pensei até que esse seria um grande sinal para seguir carreira na área jurídica (logo desapeguei dessa ideia, ainda bem). Mas até ler a trilogia do Dráuzio Varella sobre a realidade carcerária brasileira, eu não tinha a mínima noção de quantos fatores estavam envolvidos na criminalidade do nosso país. E de que forma essa criminalidade aumenta justo no lugar feito para que ela seja punida. O sistema simplesmente não funciona. E, ao ler os relatos de Dráuzio, que trabalhou como médico voluntário por mais de trinta anos nas prisões de São Paulo, descobri uma realidade nova, totalmente fora da minha bolha, em que existem pessoas com histórias de vida que emocionam, revoltam, entristecem. Impossível conhecê-las e continuar indiferente.
O primeiro livro, “Carandiru”, retrata o cotidiano do maior presídio da história do país. A Casa de Detenção de São Paulo, localizada no bairro Carandiru, continha 7200 presos quando Dráuzio iniciou o seu trabalho voluntário de prevenção à AIDS em 1989. Ali, conheceu um novo código penal, que nunca foi escrito, mas que era respeitado por todos os detentos. As regras da prisão não se adequam às leis válidas aqui do lado de fora, e, assim como toda sociedade isolada e esquecida pelo Estado, novas regras de convivência são criadas. Lá dentro, o médico presenciou mortes por uso de drogas, mortes por violência, mortes por dívidas, mortes por descaso. Mas a morte mais impactante que vivenciou foi o massacre de 1992, quando 111 presos foram mortos pela Polícia Militar por um comando irresponsável e desumano. Foi um dos acontecimentos mais marcantes do sistema penitenciário brasileiro, e foi a deixa para que o crime organizado se estruturasse e mandasse nas cadeias a partir de então. Esse livro é a ponta do iceberg para entender a complexidade da desigualdade social brasileira e como ela é escancarada nos presídios do nosso país.
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Assim como os presos, existem outras pessoas que também convivem com esse mundo diariamente. São aquelas que trabalham nos presídios. “Carcereiros” é o segundo livro da trilogia. Alguns funcionários das prisões tornaram-se amigos próximos de Dráuzio; são homens com quem costuma sair mensalmente para tomar uma cerveja e falar sobre a vida. A partir da visão deles, Dráuzio explica o tênue equilíbrio de forças que mantém a ordem entre os dois lados da grade. São, muitas vezes, pessoas humildes, que viram nesse emprego uma oportunidade para uma vida melhor. Com muito jogo de cintura e, frequentemente, com uma pitada de humor, conseguem resolver conflitos e tomar decisões complicadas e improváveis para qualquer outro tipo de profissão. É óbvio que alguns saem da linha e acabam por se contagiar pela violência com que são obrigados a conviver todos os dias. Citando Dráuzio, “a convivência diária com a brutalidade da cadeia e com a falta de respeito à vida é que os contamina e transforma”. O ser humano nunca pode ser definido como inteiramente bom ou inteiramente mau, e lendo esse livro me dei por conta de como essas duas facetas de personalidade costumam variar em todos nós.
Sobre o livro mais recente da trilogia, meu preferido, Dráuzio expôs em sua escrita, para esta feminista convicta que vos fala, mulheres as quais o meu discurso de igualdade está longe demais para atingir. “Prisioneiras” retrata mulheres guerreiras, inteligentes, malandras, maltratadas, apaixonadas. Quase todas, inteiramente abandonadas. A nossa sociedade patriarcal consegue aceitar um marido, pai ou filho preso. Mas é raro a aceitação de uma mulher presa, seja ela esposa, mãe ou filha. Mesmo quando esta mulher foi presa por carregar drogas na vagina para pagar a dívida do companheiro encarcerado e ameaçado de morte. Mesmo quando ela tem 5 filhos para cuidar e ninguém para ajudá-la. Mesmo quando ela está grávida. Mesmo quando ela foi arrastada para o mundo do crime pelo marido.
Para mim, este livro é um soco no estômago e um incentivo à tomada de consciência de que o machismo aprisiona, adoece, castiga, mata. O que me chamou a atenção também foi que neste terceiro livro, Dráuzio se sente mais à vontade para opinar sobre políticas públicas que seriam necessárias para melhorar a vida da população – não só a carcereira, mas a geral. Ele explica, com números e dados, como a construção de mais presídios não é a solução para a redução da criminalidade, como o nosso país é fatalmente racista e desigual, como meritocracia simplesmente não existe.
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Cresci em uma família classe média, num bairro amigável, rodeada de amor e incentivo. Nunca vou saber de fato o que todas essas pessoas viveram para acabar atrás das grades. Não sei se teria a coragem de Dráuzio de me doar de forma tão grandiosa para conhecer, vivenciar e ajudar uma realidade tão dura e injusta, tão distante da minha. Mas, lendo seus livros, consegui entender. E, nos dias de hoje, nesses tempos sombrios em que empatia não existe, entender já é muita coisa.
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