EPISÓDIO 6
“Falta muito pra chegar?”. Toda criança já falou essa frase em viagens. Meus pais, claramente cansados de me escutarem verbalizando tais palavras, impuseram uma brincadeira que consistia em contar os carros que por nós passavam. Depois de alguns minutos, entediada com a tarefa, colocava-me a criar histórias para essas pessoas que se deslocavam, imaginando para elas grandes aventuras. Eu não me recordo daqueles trajetos, se eu comia algo, se tinha alguma música tocando no rádio, só tenho vagas lembranças de algumas das histórias que eu criei sobre o trajeto das outras pessoas. O meu percurso era só um percurso para chegar ao destino final. Sem nada muito empolgante.
Foto: Rafaela Frison |
E assim são os nossos deslocamentos diários. Só usamos aquele trecho de rua para chegar ao nosso destino final. Sem histórias, certo? Errado. Com certeza, há várias, mas nossa cegueira, ocasionada pela correria do dia-a-dia, nos faz perdê-las. Eu, particularmente, só lembro de histórias dos percursos cotidianos quando elas não são cotidianas. Essas, geralmente, são as que nos causam desconforto momentâneo, parecem uma tragédia, mas que, depois, se tornam causos para contar aos amigos em uma mesa de bar.
Quer caminho mais costumeiro daquele que fazemos até a parada do ônibus que nos levará ao trabalho ou à faculdade? Não há. Pois bem, um dos meus tradicionais trechos a ser percorrido todas as manhãs é aquele beco na frente do prédio de Direito da UFRGS. De um lado o muro do viaduto da João Pessoa, do outro, uma cerca. Sobre os inúmeros dias que eu passei por lá, não há nada para ser contado, exceto sobre o único dia que algo inesperado aconteceu: uma tentativa de assalto. Apenas uma tentativa porque o assalto não foi consumado graças à um homem, portando um facão, que nos salvou e correu atrás do ladrão. Um momento de desespero na hora, mas que me tirou da rotina e que, agora, me rende uma ótima história sobre uma das ruas da cidade em que moro.
Por quatro anos, quase uma vez por mês, eu me desloco de Porto Alegre a Casca, de Casca a Porto Alegre. Sai pela BR-448, pega a 386, segue toda a vida e, enfim, continua pela RS-129. Isso são milhares de quilômetros, horas que já contabilizam dias e muitas histórias perdidas, porque se eu precisar contar uma quando me pedirem para contar boas histórias entre uma rodada e outra de cerveja, eu só lembro de duas: a do dia em que eu peguei carona com um guri desconhecido e ele furou o pedágio, ou aquela em que, mais uma vez, peguei carona – mas, dessa vez, com alguém conhecido – e fomos obrigados a parar em praticamente todos os postos ao longo da estrada para encher um pneu que ficava murchando, já que o estepe do carro estava oxidado e o motorista não queria desembolsar o valor de um conserto naquele momento. Duas histórias não rotineiras de um trajeto tão rotineiro. Ah, os famosos perrengues!
Assim, aguardo o momento de viver novamente, lá fora, momentos inesperados na minha ordinária rotina pelas ruas e pelas estradas. Espero que eles sejam tão inusitados para que possam gerar boas histórias a serem contadas enquanto eu estiver em um bar, sentada em uma daquelas mesas de plástico estampadas por uma marca de cerveja, rodeada de amigos. Quem sabe eu conto também sobre esse ano de 2020, já que ele é um grande tachão de sinalização – aquele que passamos por cima de carro e nos provoca um chacoalhão. Um grande perrengue no itinerário da vida.
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Esta crônica foi escrita por Rafaela Frison.
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Rafaela Frison é estudante de Jornalismo na UFRGS e estagiária na assessoria de imprensa da Sogipa. Além disso, faz parte da comunicação do Instituto Curicaca. É amante dos esportes olímpicos e não nega um convite gastronômico.