Quase que na contramão do governo federal, os estados têm promovido a corrida das vacinas. O objetivo é vacinar o maior número de pessoas no menor tempo possível, freando, assim, a circulação do coronavírus nas cidades brasileiras. Apesar de parecer simples, colocá-lo em prática é mais complexo (ou, pelo menos, tem sido no Brasil). Primeiro, é preciso uma logística que garanta o abastecimento regular de vacinas, tanto de primeiras quanto de segundas doses, já que a maioria dos imunizantes utilizados no país precisam de duas doses para garantir a imunização. Em segundo lugar, é necessária a adesão da população.
Nas últimas semanas, o governador de São Paulo, João Dória (PSDB) junto com o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB) anunciaram nas redes sociais o avanço da vacinação contra a Covid-19 para novos grupos etários. Em tom de comemoração, os políticos estão reduzindo as faixas etárias permitidas para imunização de forma bastante rápida.
Em um primeiro momento, a notícia parece ser boa. Mas, ao olhar para os números de imunizados, logo percebe-se o problema. As idades contempladas vêm diminuindo porque nem todas as pessoas que poderiam se vacinar estão buscando as unidades de saúde. Claro, cada dose aplicada é motivo de comemoração. Mas, a verdadeira vitória contra a pandemia só virá com a vacinação coletiva. É preciso alcançar índices de 70% da população vacinada para frear o contágio do vírus.
O Acabou em Pizza mergulhou nos dados da vacinação de quatro Estados que disputam, nas redes sociais, a corrida pela vacinação.
RIO GRANDE DO SUL
O Rio Grande do Sul chega ao final do mês de junho com cerca de 15% de sua população vacinada com as primeiras e segundas doses de imunizantes contra covid-19. É, no momento, em proporção, o Estado que mais vacinou pessoas. Se analisar apenas a primeira dose, o número sobe para 37,7%. A grande diferença, porém, chama atenção. São mais de três milhões de pessoas que tomaram a primeira dose da vacina, mas que ainda não receberam a segunda fase da imunização.
O principal motivo dessa diferença é o tempo de espera entre imunizantes. Tanto as vacinas de Oxford/Astrazeneca, da Fiocruz, como da Pfizer têm intervalo entre doses de três meses. Isso significa que, em julho, receberão a segunda dose pessoas vacinadas com estes imunizantes em abril. Como tanto a Astrazeneca como a Pfizer começaram a ser distribuídas com mais intensidade a partir de abril e maio, o número de imunizados com duas doses deve começar a aumentar a partir do próximo mês.
É preciso entender, porém, que caso não haja intensificação na produção das vacinas destas duas farmacêuticas, o aumento de pessoas vacinadas com duas doses freará o aumento de pessoas vacinadas com uma dose só. Isso porque, hoje, não há reserva específica e proporcional para a segunda dose. A distribuição para D1 ou D2 vai acontecendo conforme orientação do Ministério da Saúde. Assim, por exemplo, há semanas que chegam apenas vacinas para primeira dose; outras, para segunda.
Neste momento, o que preocupa tanto a Secretaria Estadual de Saúde como os municípios são as pessoas que, já podendo ter tomado as duas doses de vacina, ainda não a fizeram. A maioria delas estão imunizadas com CoronaVac, do Instituto Butantan.
Pegamos, como exemplo, pessoas vacinadas acima dos 80 anos de idade no Estado. Por serem uma das primeiras imunizadas pelo Plano Nacional de Imunização, muito provavelmente todas essas pessoas foram vacinadas com a ConoraVac. No Estado, há uma diferença de 20 mil pessoas entre a primeira e a segunda dose. Número parecido com os de 75 a 79 anos: 19 mil pessoas que tomaram a primeira dose não tomaram a segunda.
Em conversa com o Acabou em Pizza, a chefe da Divisão de Vigilância Epidemiológica do Centro Estadual de Vigilância em Saúde, Tani Ranieri, diz que, em casos de pessoas que já poderiam ter tomado a segunda dose vacina e ainda não a fizeram, a Secretaria Estadual de Saúde tem feito uma lista nominal e encaminhado para cada município fazer sua busca ativa. Esta lista surge de um sistema de monitoramento que os próprios municípios precisam cadastrar indicando nome e dados dos vacinados, farmacêutica e data de aplicação. São esses dados, também, que permitem a atualização do “vacinômetro”, plataforma na Internet em que é possível acompanhar o ritmo de vacinação dos gaúchos.
Neste vacinômetro, inclusive, existem dados interessantes de serem analisados. Um deles mostra quanto das doses distribuídas já foram aplicadas nos municípios. Este é um indicador importante, afinal, o principal objetivo do serviço não é distribuir a vacina, mas sim, aplicá-la. Hoje, 12% das vacinas distribuídas pelo Estado ainda não foram aplicadas ou as aplicações ainda não foram atualizadas no sistema. Em números brutos, são cerca de 900 mil doses.
O município com a maior diferença é Chuí, onde foram aplicadas 58,8% das doses distribuídas, seguido por Rio Grande, com 59%. Segundo Tani, isso acontece, principalmente, porque alguns municípios demoram para atualizar o sistema de imunização. Ou seja: já se vacinaram, mas ainda não colocaram no sistema.
“É importante esclarecer que isso não afeta em absolutamente nada a distribuição de vacinas”, explica a chefe da divisão. Isso porque o número de doses por município é definido por um sistema do Ministério da Saúde que usa como base a quantidade de habitantes dos grupos prioritários nas cidades. Ela continua: “Utilizamos o vacinômetro para buscarmos uma cobertura vacinal”.
Mesmo que não tenha impacto na distribuição, os dados são importantes e devem ser atualizados porque são definidas, a partir deles, as estratégias de combate à pandemia.
Na contramão desses municípios que aplicaram praticamente metade das vacinas recebidas, existem outras cidades que já aplicaram mais do que receberam. O principal exemplo é Barra do Ribeiro, que aplicou 12.059 doses, mas só recebeu 8.261. A justificativa para esse caso, segundo a Secretaria de Saúde, é que entraram no registro as vacinas aplicadas em indígenas da região, mesmo que elas tenham sido distribuídas por outro departamento que não o da Secretaria da Saúde.
RIO DE JANEIRO
Em comparação, o Rio de Janeiro tem cerca de 10% da sua população vacinada com as duas doses, ocupando o 16º lugar na corrida das vacinas dos estados brasileiros. A Secretaria de Estado de Saúde informa que foram distribuídas 2.027.490 doses de Coronavac, 3.685.430 doses de Oxford/Astrazeneca e 525.156 doses de Pfizer para primeira aplicação. Para a segunda dose, distribuíram-se 2.586.580 doses de Coronavac e 788.790 de Oxford/Astrazeneca. Aqui, o que chama a atenção é o número superior de D2 da Coronavac em relação à D1, são 559.090 a mais de segundas doses. Sobre isso, a SES/RJ informou que os pedidos são feitos pelos próprios municípios e nos aconselhou a entrar em contato com cada uma das 92 cidades do Rio.
Considerando os dados fornecidos pelo vacinômetro do RJ, das primeiras e segundas doses distribuídas, 4.633.411 e 1.743.722 foram aplicadas respectivamente. Assim, dos imunizantes disponíveis para primeira dose, mais de 74% foram aplicados, enquanto que, apenas 51% das segundas doses foram realizadas. A diferença entre os imunizados com a primeira e segunda dose no Rio de Janeiro também é gritante, são mais de dois milhões de pessoas (2.889.689) que receberam apenas a primeira aplicação, o que equivale a 62% daqueles que tomaram a D1.
A explicação pode estar no período necessário entre a primeira e a segunda aplicação, especialmente da Astrazeneca. Ou, ainda, como a própria SES-RJ informa, e conforme já relatado no estado do Rio Grande do Sul, está na dificuldade de atualização do Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), seja por dificuldades técnicas ou por falta de profissionais para realizar os registros.
A SES/RJ não soube informar quantas das doses aplicadas correspondem à Coronavac e quantas à Astrazeneca. Novamente, a falta de organização chama a atenção. Afinal, para uma boa logística de entrega e aplicação de imunizantes, é necessário saber a quantidade aplicada de cada um.
Se pegarmos, como exemplo, pessoas vacinadas acima dos 80 anos de idade no Estado há uma diferença de mais de 80 mil pessoas entre a primeira e a segunda dose. Entre 75 a 79 anos, a diferença é menor: mais de 61 mil pessoas que tomaram a primeira dose não tomaram a segunda. Em comparação ao RS, o número é quatro vezes maior acima dos 80 anos e três vezes entre os 75 e 79 anos.
Outro dado preocupante é a falta da segunda dose nos trabalhadores da saúde. Menos da metade (47,4%) completaram as duas aplicações dos imunizantes. Importante ressaltar que este grupo foi um dos primeiros a receber as vacinas.
SÃO PAULO
Um dos principais personagens da corrida vacinal, o estado de São Paulo já vacinou cerca de 13% de sua população com as duas doses da vacina. O principal imunizante até agora é o de Oxford/Astrazeneca. Das 24 milhões de doses aplicadas, entre primeira e segunda fase, a vacina da Oxford entrou no braço de paulistanos 11,1 milhões de vezes. Isso ajuda a explicar a diferença entre imunizados com D1 e D2, já que o período entre as duas aplicações é de três meses. Em São Paulo, 17 milhões de pessoas já tomaram a primeira dose, enquanto apenas 5 milhões realizaram a imunização completa.
Logo atrás da vacina de Oxford, a Coronavac, produzida no instituto paulistano Butantan, já foi aplicada 10,9 milhões de vezes na população do Estado mais populoso do Brasil. Com tempo de duração entre doses menor, apenas 28 dias, a maioria dos vacinados com segunda dose são pessoas que tomaram Coronavac.
O estado de São Paulo não divulga como está o ranking vacinal em grupos de idades, como faz o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, mas aponta o ranking de cidades que mais vacinaram. A primeira na lista é Botucatu, que já vacinou 81% da população com a primeira aplicação. Isso porque a cidade foi escolhida para receber a vacinação em massa da Oxford/Astrazeneca. Segundo a Universidade Estadual de São Paulo, a Unesp, houve uma queda de 71% de casos de covid-19 em duas semanas depois do teste.
Outra cidade de São Paulo também escolhida para receber a vacinação em massa foi Serrana. Nesse caso, o imunizante usado foi a Coronavac. A cidade já imunizou 75% dos seus moradores. Em maio, foi divulgado que os casos caíram 66% após a vacinação.
Já o município de São Paulo, o maior do Brasil, tem 19,5% da sua população acima dos 18 anos vacinada. Segundo o mapeamento da prefeitura, 100% das pessoas acima de 75 anos tomaram a vacina. Os números, porém, podem ser defasados, porque o levantamento que indica a quantidade de moradores com certa idade não é bem preciso. Um exemplo disso é que o monitoramento aponta que, de uma população de 200 mil habitantes que tem entre 75 e 79 anos, 226 mil tomaram a vacina. Ou seja, 26 mil a mais do que a população prevista para faixa etária. Além da falta de controle, outra situação é a de moradores de cidades próximas que podem ter sido vacinados em São Paulo para entrar na faixa etária permitida.
Ainda olhando para cidade de São Paulo, chama atenção que, de 60 a 64 anos, 100% da população tomou a primeira dose da vacina, mas apenas 15% tomou a segunda dose. A explicação para este caso é que, na época de vacinação desta faixa etária, a maioria dos imunizantes era da Oxford/Astrazeneca, que tem prazo de três meses entre doses. É importante ressaltar, porém, que chegará um momento em que as doses de Astrazeneca precisarão ser divididas entre novos grupos etários, que poderão tomar a primeira dose e o forte contingente de pessoas que esperam pela segunda dose do imunizante.
A falta de clareza sobre os dados da vacinação prejudica o controle social e a transparência, itens fundamentais em uma democracia. Por isso, é essencial que esses dados sejam de fácil acesso para toda a população e que não exija pesquisas elaboradas. Também, levanta questionamentos sobre a organização do governo estadual, em último nível, já que este não consegue coordenar e pressionar os municípios a entregar corretamente os dados vacinais. Além disso, sem informações por grupo etários, fica difícil direcionar a campanha de vacinação àqueles com maior evasão.
MARANHÃO
Maranhão chamou a atenção do Brasil pela agilidade na vacinação e por, rapidamente, disponibilizar o imunizante para populações com baixa faixa etária. O principal motivo disso é que o Estado recebeu doses extras de vacinas para se proteger contra a variante delta do coronavírus. Por lá, 32% da população já tomou a primeira dose, mas apenas 8,77% tomou a segunda dose ou a dose única da vacina. O principal motivo, assim como outros estados, é que a maioria das pessoas receberam a Oxford/Astrazeneca, que tem um tempo entre doses de três meses. Assim, das 1,6 milhão de pessoas no Estado que tomaram a primeira dose dessa farmacêutica, apenas 368 mil já tomaram a segunda aplicação.
A diferença entre doses é bem diferente da Coronavac, cujo intervalo é de 28 dias. Nesse caso, das 649 mil pessoas que tomaram a primeira dose de Coronavac, 546 mil já receberam a segunda.
Assim como São Paulo, o estado do Maranhão não divulgou o levantamento estadual de aplicação por grupo etário. Nos cenários municipais, apontam quantas pessoas tomaram a vacina, mas não fazem a relação de quantas pessoas poderiam ter tomado. Por exemplo: em São Luís, entre 60 e 64 anos, 48,4 mil pessoas pessoas receberam a primeira dose de Astrazeneca. A segunda dose foi aplicada em apenas 271 pessoas. Mas, em nenhum momento, diz qual o tamanho total deste grupo e a porcentagem relativa. O Acabou em Pizza tentou contato com a Secretaria Estadual de Saúde para saber mais detalhes sobre o processo de imunização no dia 17 de junho, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
FALTA TRANSPARÊNCIA E ORGANIZAÇÃO
Na produção desta reportagem, ficou evidente a desorganização e o desconhecimento das Secretarias Estaduais de Saúde em relação aos dados das vacinas. Em teoria, as informações oficiais deveriam corresponder à realidade. Mas com a falta de profissionais para atualizar o sistema, os dados ficam defasados diariamente e abrem margem para erros de avaliação a partir deles, já que podem indicar algo que não corresponde à verdade. De certa forma, os municípios e os estados estão dando voos cegos em relação à vacinação. Com isso, tem-se cidades que pediram mais segundas doses do que primeiras. Outras que vacinaram mais pessoas do que doses recebidas. Pelo sistema, vacinas que estariam vencidas na data teriam sido aplicadas. Todos esses erros nos dados parecem ser causados por falhas humanas no preenchimento ou por causas que até as secretarias desconhecem.
A falta de diretrizes e coordenação nacional levam a este cenário. Cada estado decide divulgar os dados que julga pertinente dentro dos seus portais, o que dificulta a comparação entre cidades e estados, além dificultar ou até mesmo impossibilitar a organização de campanhas vacinais para os públicos com menor adesão.
Os sucessos anteriores das campanhas de vacinação do SUS se devem em grande parte ao Plano Nacional de Imunização, coordenado pelo Ministério da Saúde. Durante à pandemia, a pasta viveu várias crises, trocas de comando e, agora, em um momento tão crucial, precisaria demonstrar sua força comandando a vacinação nacionalmente. Porém, o que tem se visto, é uma falta de logística na compra e distribuição dos imunizantes, o que retarda e enfraquece a campanha de vacinação contra à covid-19.