EPISÓDIO 4


Ao percorrer um mesmo caminho, diariamente, a tendência é que ele se torne cada vez mais comum ao nosso olhar. Que os detalhes se percam nos cantos da rotina. Que os rostos que passam por nós tenham cada vez menos impacto no nosso dia. No entanto, para toda regra existe uma exceção. A minha exceção era o trajeto que culminava no cruzamento da Avenida Ipiranga com a João Pessoa. Duas grandes e históricas avenidas repletas de tradição por onde tantas outras pessoas haviam passado antes de mim e deixado suas próprias memórias impressas na calçada. 


Foto: Cainan Silva


A minha rota começava no Planetário, ao sair da faculdade, e ia até o Palácio da Polícia Civil, onde eu trabalhava. Simples e prático. Um itinerário curto que logo se tornaria monótono, eu pensei. Só levava cerca de cinco minutos para chegar até o meu destino, afinal. Caminhava o mais rápido o possível, às vezes por medo de ser assaltado, mas, geralmente, por achar desnecessário gastar mais tempo que o necessário num momento tão banal. Aí apareceu meu melhor amigo. Na época, ele ainda era só um colega que fazia o mesmo percurso para o trabalho dele. Aos poucos, o barulho do trânsito que servia de trilha sonora para a minha jornada deu lugar às conversas, risadas e discussões acaloradas sobre os mais diversos assuntos.


Com o passar do tempo, aquela se tornou minha nova rotina. Só que era longe de ser monótona como eu havia previsto. Todo dia, o assunto era diferente e estar naquela fase quando você está conhecendo alguém e criando uma amizade tornava tudo ainda mais interessante.  Entre um assunto e outro, nós acendíamos um cigarro que sempre acabava na hora certa, quando nos despedíamos. Para nossa sorte, na esquina onde nossos caminhos se separavam, há um Burger King. Era questão de tempo até que começássemos a almoçar ali. Agora, as discussões e piadas vinham acompanhadas de fritas. Eu fazia o meu pedido e sentava na janela, que ficava de frente para o Palácio. Ele achava o prédio feio e eu discordava.


Os cinco minutos que eu levava se tornaram meia hora e eu chegava para trabalhar atrasado mais vezes do que gostaria. Mesmo quando eu andava sozinho por aquela avenida, prestava atenção em quase tudo. Ou me distraía no processo. Porque eu lembrava trechos diferentes de conversas a cada passo que dava, começava a rir de alguma piada e tinha de lutar contra a vontade de acender um cigarro que duraria o tempo exato que eu precisasse dele. E, no fim, eu dava uma olhada pela janela do Burger King e imaginava qual caminho teria levado aquelas pessoas até ali e como seria o resto do dia delas. Quanto a mim, eu sabia que um dos momentos mais especiais do meu dia acabaria assim que eu atravessasse a rua.


____

Crônicas de Sexta

Este texto faz parte do projeto ‘Crônicas de Sexta’. Leia mais:

A arte do projeto é da Vitória Cristofolli. Acompanhe o trabalho dela aqui: @nuncanemvit_


Escrito por

Cainan Silva

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *