“A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”. A frase do filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) permeia quase qualquer discussão sobre liberdade de expressão. A lógica é simples: cada um no seu quadrado e ninguém incomodando ninguém. Porém, o limite entre a liberdade de um e de outro é muito tênue, e cruzar ele pode ser um caminho perigoso e, muitas vezes, sem volta.


Durante a última semana, acompanhamos a prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), após a publicação de um vídeo de quase 20 minutos em que faz críticas, ameaças físicas e acusações graves contra diversos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), além de defender o fechamento da corte, o que é inconstitucional. Como se as declarações não fossem suficientes, o deputado ainda fez apologia ao Ato Institucional Nº 5 (AI-5), uma das mais rígidas e agressivas medidas da Ditadura Militar, que impunha censura a população.

No dia 19, Câmara de Deputados manteve prisão do congressista
Foto: Michel Jesus / Câmara dos Deputados / Divulgação

A resposta do STF foi rápida e direta.  Por volta das 23h da terça-feira (16), o ministro Alexandre de Moraes determinou a prisão de Silveira, por tentar “mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”. Na decisão, Moraes ordenou que o mandado deveria ser cumprido “imediatamente e independentemente de horário por tratar-se de prisão em flagrante delito” sem a possibilidade de fiança. O ministro também determinou que o YouTube retirasse o vídeo do ar, sob pena de multa diária de R$ 100 mil. Na quarta-feira (17), o plenário do STF analisou a decisão de Moraes e votou por unanimidade na manutenção da prisão. Por ser um deputado federal, a Câmara precisa dar o aval para o despacho dos magistrados. Na votação, foram 364 votos a favor da manutenção da prisão e 130 contra. 


A decisão individual coube ao Moraes por ele ser o relator dos inquéritos sobre fake news e atos antidemocráticos, nos quais o deputado Daniel Silveira é um dos investigados. 

Dados os fatos, permitam-me acrescentar mais dois pontos importantes sobre o histórico do congressita antes de, enfim, analisar a prisão do deputado. Primeiro: antes mesmo de assumir o cargo, ele já fora acusado de quebra de decoro parlamentar e vandalismo, quando destruiu uma placa de rua em homenagem a vereadora assassinada Marielle Franco. Segundo: agora na pandemia, a maior crise sanitária do século, Silveira se recusa a usar máscara, classificando-a como uma “focinheira ideológica”. Além, claro, das participações em atos antidemocráticos e do incentivo constante à agressão física contra pessoas de esquerda.


Agora, sim. Partimos à análise. Vamos começar pelo motivo da prisão: o vídeo publicado por Silveira. Difícil de ser visto, o material tem comentários insultantes e caluniosos, que se qualificam como crimes contra a honra, o que, segundo a Constituição Federal, ultrapassa o limite da liberdade de expressão. Se não bastasse isso, como dito anteriormente, o vídeo faz alusão ao AI-5, que, sim, restringia a liberdade de expressão e os direitos humanos mais básicos. Fato é: a simples menção a um estado totalitário já é uma posição perigosa para uma democracia consolidada. Esta situação se agrava quando é proferida por autoridades do poder público, gerando incertezas e um sentimento de instabilidade, por mais que as Forças Armadas já tenham declarado, diversas vezes, que respeitam o estado democrático de direito.

Ministro Alexandre de Moraes
Foto: Fabiro Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Posto isso, podemos pensar sobre a determinação do ministro do STF. Por mais que conste na Constituição que a casa é um asilo inviolável do indivíduo, podendo só ser penetrada por ordem judicial durante o dia, é importante percebemos aqui que a decisão de Moraes é baseada numa prisão em flagrante. Isso significa que, independente do horário, a execusão da determinação pode ser feita. Isso levou a uma outra discussão no meio jurídico sobre a legitimidade do processo. Afinal, qual o prazo de validade de um vídeo publicado em uma rede social para este ser considerado motivo de prisão em flagrante? Os juristas terão que pensar sobre. O plenário do STF determinou a legalidade da prisão por unanimidade, que foi confirmada posteriormente pela Câmara dos Deputados.

A democracia é baseada no diálogo e no respeito às opiniões divergentes. Essa é a garantia da liberdade de expressão. Esta base, porém, não deve ser confundida com liberdade ilimitada e, no caso do parlamentar, imunidade. “A liberdade de expressão é apanágio da condição humana e socorre as demais liberdades ameaçadas, feridas ou banidas. É a rainha das liberdades” disse um dos pais da nossa Constituição, Ulysses Guimarães, o que mostra como devemos valorizá-la, e não flertar com os limites dela, afinal, a honra de outra pessoa está além dos limites da minha liberdade, está fora do meu quadrado.

Em suma, a prisão do deputado teve suas contradições no meio jurídico, mas na sociedade em geral a resposta deveria ser tão direta quanto a dada pelo STF: não toleramos discurso de ódio e não vamos aceitar atentados ao estado democrático de direito. Por fim, o momento exige um chamado à moderação e ao diálogo democrático contínuo. Se o jogo entre liberdade e impunidade resultar num desequilíbrio, com cada um acreditando que detém toda a razão e pode dizer o que lhe convém, o custo poderá ser grande e recair sobre a nossa preciosa liberdade.

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Este artigo de opinião foi escrito por Enzo Algarve e faz parte do Projeto Acabou em Pizza Colaborativo.
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Sobre o autor:


Enzo Olivotti Algarve é acadêmico de Medicina na Universidade Cidade de São Paulo – UNICID e tem grande interesse em saúde pública, política, economia e cultura geek.

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Acabou em Pizza

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